Um escrito sobre a cena. Fiz antes de conhecer o Pio pessoalmente, portanto antes de pensar em fazer algo com o Massa Grossa. Só conversava com Ana Clara sobre o assunto. Hoje, acho que aqui é o lugar mais interessante para ele ser publicado.
dias quentes
Uma palavra sobre a cena da música popular contemporânea do Pará
Oferecer uma palavra sobre o que está acontecendo é sempre mais desafiador e ousado (e proporcionalmente mais fecundo e instigante) do que discorrer acerca do que já está fixado e, portanto, já é mais estável. Mas o que está acontecendo? O que sucede nesta paisagem verde/caos no fervor das horas matinais da música popular no Pará? Que “qualidade de percepção”[1] esta música oferece para si mesma e para o mundo? Quais os artistas que me fazem sentir e pensar uma nova atmosfera, nesta terra em que, explicitamente, os dias são como as suas músicas, a saber, cada vez mais quentes...[2]?
Cheguei ao ponto de ter coragem de lhe oferecer esta palavra de ousadia na medida em que me vi na condição de dizer algo a mais do que se fala, mas também de dizer algo a menos do que eu queria. Estamos diante de uma das mais interessantes cenas da música popular contemporânea do Brasil.
É preciso avisar que se trata de uma primeira palavra e que alguns caminhos só serão percorridos posteriormente (por mim e por outros), em estudos e rastreamentos mais rigorosos do que os meus. Aliás, não estudo nem rastreio, apenas ofereço uma imagem, um cinema, uma atitude de desvirginamento, a palavra sobre a página branca.
Sinto que estamos diante de intersecções históricas e intelectuais propícias para se pensar essa música. Quero destacar em especial uma, é que essa música se afirma sobre as ruínas da cidade de Belém, cidade que perdeu o centro, que deixou de perseguir (por cansaço) um centro, e que deixou de ser o centro da Amazônia, ganhando sua música. Na verdade, quase todas as cidades do mundo dispersaram suas atividades (econômicas, políticas e culturais) pelas ruelas dos becos da periferia. Indo mais na ferida, percebemos que o próprio homem perde seu centro, dilui-se no experimentalismo de si, o homem passa a ser ninguém, “ninguém no plural”.
A periferização do mundo torna-se um dos temas mais discutidos por intelectuais da antropologia, da economia e das ciências políticas desde os anos 80. A situação pós-fordista impôs uma nova reflexão sobre os conceitos de desenvolvimento além de reconfigurar a noção de trabalho. Houve uma “brasilinização”[3] do mundo, assim disseram num tom pejorativo em meados dos 80, quase que consensualmente, os pensadores da economia e política global. A musica brasileira reagiu: “Alguma coisa está fora da ordem/fora da nova ordem mundial...”. O Brasil, que há muito era o país do futuro, passou a representar, paradoxalmente, o país que marca o futuro do Ocidente. Dentro do Brasil, a Amazônia tem o lugar privilegiado. Por quê? Porque é a única região do mundo que nos encaminha rumo a um materialismo imanente, capaz de servir de novo paradigma para a questão central das discussões em torno do futuro do mundo globalizado, a saber, como criar uma nova idéia de desenvolvimento?
O Devir-Amazônia é, portanto capaz de nos fazer superar noções auto-destrutivas de desenvolvimento neoliberal, cujo momento emblemático está na crise erroneamente chamada de “econômica” de 2009, assim como as noções ingênuas de desenvolvimento sustentável, pois muda o próprio conceito de desenvolvimento. Este, não é mais pautado na esfera econômica, mas na relação imanente com a terra, resignificando a relação homem-natureza. O homem tem a oportunidade singular de inventar-se, a floresta é a virgindade da página branca.
O trabalho ganha, nesse contexto em que as instituições financeiras não conseguem mais controlar os “riscos”, uma dimensão chave na configuração da sociedade contemporânea. A informalidade e consequentemente a ausência de regulamentos, direitos e segurança, traça um novo perfil nas margens da cidade.
Com efeito, há no contexto da música feito no Pará uma coincidência histórica que nunca houve antes, pela primeira vez a música popular do Pará é contemporânea, isto é, está em sintonia com as questões contemporâneas. O tecno-brega é seu estilo emblemático. Cópia da cópia, margem da margem. Música pirata, que invade o centro de Belém, transformando-o num rizoma incalculável, o tecno-brega não é um ritmo e é mais que um estilo, pois traduz precisamente o estado de espírito do mundo em que vivemos. Aniquila, tendo como impulsionador o “precário”, o “distorcido”, o “kitsch”. Todo o mundo da representação do Belo desaparece, nunca existiu.
Sobre as ruínas mas sob o céu azul, riscado por pássaros negros, emerge essa música, essa maneira de fazer música brasileira. Essa música é poética e poesia é risco[4].
Entre outras coisas, que não me cabe aqui discorrer, destaco que na medida em que o Brasil entrou no processo de descentralização, fez com que os brasileiros ouvissem outras músicas, que não entravam com freqüência (e nas freqüências) ou com destaque suficiente nas linhas da história da música popular brasileira. Esta, que sempre foi colocada em termos insuficientes, quando não incompetentes mesmo[5].
Na década de 1990, talvez pela primeira vez na história do Brasil, os brasileiros não olharam para a música carioca como o centro das atenções, e entre outras direções, a música pernambucana tornou-se um achado. Mais do que isso, o Mangue Beat de Chico Science, sintoma do colapso da forma canção, revolucionou a música do Brasil. A estética afrociberdélica apareceu, possibilitando que anos depois a guitarrada no Pará fosse reinterpretada, e que o tecno-brega não fosse de todo um “mal-entendido”, como tinha sido a guitarrada por muitas décadas, até que Pio Lobato esclarecesse tudo.
Com Pio Lobato nasce a cena da música contemporânea no Pará. Ele é a estaca zero da consciência da cena da música no Pará de hoje. Estudar os mestres da guitarrada foi somente o primeiro passo da revolução que estava por vir com seu pensamento-tocado acerca da estética da música contemporânea no presente paraense. Tudo que falei até aqui, neste brevíssimo e mal resolvido ensaio, está na música do Pio Lobato, reverbera dos movimentos da palhetada de “Recado Para Lúcio Maia” e “Psicocúmbia”. Não é um ritmo que nasce, mas uma sensibilidade estética. O princípio do hibridismo, uma das marcas da brasilinização do mundo, é tomado aqui numa perspectiva positiva, como fundamento potente de criação. A música do Pará não tem raiz, é radicalmente mestiça, só pode ser mestiça. Ela nos possibilita uma nova e vivíssima relação do Ser com a Terra, elimina a dicotomia local/universal, Arte/entretenimento, Kitsch/Cult, Comercial/Artístico. Como se dos escombros da civilização, onde, aliás, nunca chegamos a nos sentir plenamente inseridos (o projeto da Belle Époque paraense está completamente sem sentido hoje), emergisse uma sociedade radicalmente marginal, criativa, quente, líquida. Quando se pergunta “o que caracteriza a música do Pará?” A resposta só deve ser uma, o calor. Ele, nessa música, é fervura e liquidez, Deus-sonoro e dança-sagrada, a umidade do ar breante e a secura do espírito niilista, eis um painel dessa “coisa recente”, que nasce com a morte, já longínqua, de Chico Science.
Coletivo Rádio-Cipó, Madame Satan, La Pupuña, Casarão Cultural Floresta Sonora, entre os já citados anteriormente, são um dos momentos onde se percebe com nitidez solar essas transformações agudas na música brasileira, no qual a relação do homem com o trabalho, Ser e terra, visto pelo prisma de uma condição contemporânea, é reinventada. A cena que se passa é heróica, a aurora do novo mundo. Tudo dança sob o chão em chamas. A palavra música está ardendo...
Uma palavra sobre a cena da música popular contemporânea do Pará
Oferecer uma palavra sobre o que está acontecendo é sempre mais desafiador e ousado (e proporcionalmente mais fecundo e instigante) do que discorrer acerca do que já está fixado e, portanto, já é mais estável. Mas o que está acontecendo? O que sucede nesta paisagem verde/caos no fervor das horas matinais da música popular no Pará? Que “qualidade de percepção”[1] esta música oferece para si mesma e para o mundo? Quais os artistas que me fazem sentir e pensar uma nova atmosfera, nesta terra em que, explicitamente, os dias são como as suas músicas, a saber, cada vez mais quentes...[2]?
Cheguei ao ponto de ter coragem de lhe oferecer esta palavra de ousadia na medida em que me vi na condição de dizer algo a mais do que se fala, mas também de dizer algo a menos do que eu queria. Estamos diante de uma das mais interessantes cenas da música popular contemporânea do Brasil.
É preciso avisar que se trata de uma primeira palavra e que alguns caminhos só serão percorridos posteriormente (por mim e por outros), em estudos e rastreamentos mais rigorosos do que os meus. Aliás, não estudo nem rastreio, apenas ofereço uma imagem, um cinema, uma atitude de desvirginamento, a palavra sobre a página branca.
Sinto que estamos diante de intersecções históricas e intelectuais propícias para se pensar essa música. Quero destacar em especial uma, é que essa música se afirma sobre as ruínas da cidade de Belém, cidade que perdeu o centro, que deixou de perseguir (por cansaço) um centro, e que deixou de ser o centro da Amazônia, ganhando sua música. Na verdade, quase todas as cidades do mundo dispersaram suas atividades (econômicas, políticas e culturais) pelas ruelas dos becos da periferia. Indo mais na ferida, percebemos que o próprio homem perde seu centro, dilui-se no experimentalismo de si, o homem passa a ser ninguém, “ninguém no plural”.
A periferização do mundo torna-se um dos temas mais discutidos por intelectuais da antropologia, da economia e das ciências políticas desde os anos 80. A situação pós-fordista impôs uma nova reflexão sobre os conceitos de desenvolvimento além de reconfigurar a noção de trabalho. Houve uma “brasilinização”[3] do mundo, assim disseram num tom pejorativo em meados dos 80, quase que consensualmente, os pensadores da economia e política global. A musica brasileira reagiu: “Alguma coisa está fora da ordem/fora da nova ordem mundial...”. O Brasil, que há muito era o país do futuro, passou a representar, paradoxalmente, o país que marca o futuro do Ocidente. Dentro do Brasil, a Amazônia tem o lugar privilegiado. Por quê? Porque é a única região do mundo que nos encaminha rumo a um materialismo imanente, capaz de servir de novo paradigma para a questão central das discussões em torno do futuro do mundo globalizado, a saber, como criar uma nova idéia de desenvolvimento?
O Devir-Amazônia é, portanto capaz de nos fazer superar noções auto-destrutivas de desenvolvimento neoliberal, cujo momento emblemático está na crise erroneamente chamada de “econômica” de 2009, assim como as noções ingênuas de desenvolvimento sustentável, pois muda o próprio conceito de desenvolvimento. Este, não é mais pautado na esfera econômica, mas na relação imanente com a terra, resignificando a relação homem-natureza. O homem tem a oportunidade singular de inventar-se, a floresta é a virgindade da página branca.
O trabalho ganha, nesse contexto em que as instituições financeiras não conseguem mais controlar os “riscos”, uma dimensão chave na configuração da sociedade contemporânea. A informalidade e consequentemente a ausência de regulamentos, direitos e segurança, traça um novo perfil nas margens da cidade.
Com efeito, há no contexto da música feito no Pará uma coincidência histórica que nunca houve antes, pela primeira vez a música popular do Pará é contemporânea, isto é, está em sintonia com as questões contemporâneas. O tecno-brega é seu estilo emblemático. Cópia da cópia, margem da margem. Música pirata, que invade o centro de Belém, transformando-o num rizoma incalculável, o tecno-brega não é um ritmo e é mais que um estilo, pois traduz precisamente o estado de espírito do mundo em que vivemos. Aniquila, tendo como impulsionador o “precário”, o “distorcido”, o “kitsch”. Todo o mundo da representação do Belo desaparece, nunca existiu.
Sobre as ruínas mas sob o céu azul, riscado por pássaros negros, emerge essa música, essa maneira de fazer música brasileira. Essa música é poética e poesia é risco[4].
Entre outras coisas, que não me cabe aqui discorrer, destaco que na medida em que o Brasil entrou no processo de descentralização, fez com que os brasileiros ouvissem outras músicas, que não entravam com freqüência (e nas freqüências) ou com destaque suficiente nas linhas da história da música popular brasileira. Esta, que sempre foi colocada em termos insuficientes, quando não incompetentes mesmo[5].
Na década de 1990, talvez pela primeira vez na história do Brasil, os brasileiros não olharam para a música carioca como o centro das atenções, e entre outras direções, a música pernambucana tornou-se um achado. Mais do que isso, o Mangue Beat de Chico Science, sintoma do colapso da forma canção, revolucionou a música do Brasil. A estética afrociberdélica apareceu, possibilitando que anos depois a guitarrada no Pará fosse reinterpretada, e que o tecno-brega não fosse de todo um “mal-entendido”, como tinha sido a guitarrada por muitas décadas, até que Pio Lobato esclarecesse tudo.
Com Pio Lobato nasce a cena da música contemporânea no Pará. Ele é a estaca zero da consciência da cena da música no Pará de hoje. Estudar os mestres da guitarrada foi somente o primeiro passo da revolução que estava por vir com seu pensamento-tocado acerca da estética da música contemporânea no presente paraense. Tudo que falei até aqui, neste brevíssimo e mal resolvido ensaio, está na música do Pio Lobato, reverbera dos movimentos da palhetada de “Recado Para Lúcio Maia” e “Psicocúmbia”. Não é um ritmo que nasce, mas uma sensibilidade estética. O princípio do hibridismo, uma das marcas da brasilinização do mundo, é tomado aqui numa perspectiva positiva, como fundamento potente de criação. A música do Pará não tem raiz, é radicalmente mestiça, só pode ser mestiça. Ela nos possibilita uma nova e vivíssima relação do Ser com a Terra, elimina a dicotomia local/universal, Arte/entretenimento, Kitsch/Cult, Comercial/Artístico. Como se dos escombros da civilização, onde, aliás, nunca chegamos a nos sentir plenamente inseridos (o projeto da Belle Époque paraense está completamente sem sentido hoje), emergisse uma sociedade radicalmente marginal, criativa, quente, líquida. Quando se pergunta “o que caracteriza a música do Pará?” A resposta só deve ser uma, o calor. Ele, nessa música, é fervura e liquidez, Deus-sonoro e dança-sagrada, a umidade do ar breante e a secura do espírito niilista, eis um painel dessa “coisa recente”, que nasce com a morte, já longínqua, de Chico Science.
Coletivo Rádio-Cipó, Madame Satan, La Pupuña, Casarão Cultural Floresta Sonora, entre os já citados anteriormente, são um dos momentos onde se percebe com nitidez solar essas transformações agudas na música brasileira, no qual a relação do homem com o trabalho, Ser e terra, visto pelo prisma de uma condição contemporânea, é reinventada. A cena que se passa é heróica, a aurora do novo mundo. Tudo dança sob o chão em chamas. A palavra música está ardendo...
Felipe Cordeiro (compositor e bacharel em filosofia pela Ufpa)
[1] Referencia ao livro Verdade Tropical de Caetano Veloso.
[2] Referencia ao poema de Dand M. “Dias Quentes”.
[3]Cito Giusseppe Coco em MUNDOBRAZ: “no final da década de 1980, a metáfora da “brasilinização” passou a ser usada pelos economistas franceses da Escola da Regulação para descrever a fragmentação social e a perda de direito trabalhistas que a flexibilização do fordismo e de seu sistema de welfare acarretava e acarreta.” As principais figuras desta corrente do pensamento econômico heteredoxo são Michel Aglieta, Robert Boyer, Alan Lipietz e Benjamim Coriat.
[4] Referencia ao poema/cd de Augusto de Campos “Poesia é Risco”.
[5] Por exemplo, o que leva a se reconhecer na sigla mpb o mesmo que música popular brasileira? São coisas, obviamente, diferentes. É comum, que nos escritos sobre música popular brasileira, assim como nos textos de perspectiva histórica sobre o assunto, se tomem mpb e música popular brasileira por sinônimos. Eis uma derrapada gritante. Ora, a mpb só pode ser entendida como sendo uma maneira (um estilo) de fazer música popular brasileira, não é ela própria, só existe como distinção a outros modos de fazer música popular brasileira, sem nome. Essa tese defenderei num escrito futuro.